segunda-feira, 10 de agosto de 2020

PEQUENA HISTÓRIA DO MUNDO

 


Por José de Paiva Rebouças
josedepaivareboucas@gmail.com

    Fotos de famílias são fragmentos da realidade que vão se tornando relíquias ao longo do tempo. Uma imagem de quase trinta anos mostra meu pai ladeado por meus avós maternos. Há muito, reparo esse freme desse tempo antigo, mas só na última vez tive uma atenção muito específica para os pés desses personagens. Meu pai de botas pretas e calça jeans, meus avós de sandália de dedo, ele de calças, ela de vestido. Que pés interessantes, percebi, tortos, tão desorganizados que demonstravam todo o sofrimento enfrentado ao longo de mais de sete décadas.
      Reparando atentamente à estrutura de meu avô, um senhor da terra, silencioso e de poucos direitos, notei características adaptativas interessantes. Braços mais longos em relação ao corpo, coluna levemente inclinada para frente e os benditos pés com dedos indicando o centro do corpo e quase completa ausência de arco longitudinal medial. Secos, encardidos e duros. Sempre de chinelos, ele caminhava horas a pé por necessidade. Tinha um passo lento, mas tão firme que era difícil acompanhá-lo. Menino, logo cansava e ele, paciente, parava e ficava me esperando chegar para, dali alguns minutos, repetir a mesma ação.
      Lembro agora que meu avô tinha um ritmo muito peculiar. Como um relógio atômico que nunca atrasa. Na roça, baixava os pensamentos e, logo, estava dando duas por uma em qualquer um. Quer dizer, ele sempre estava duas carreiras de legumes à frente da gente que se distraía conversando ou bebendo água.
      Estranhamente, minha avó que passou a vida inteira dentro de casa também tinha os dedos para dentro. Os dois eram primos e isso pode ser uma característica genética herdade. Não conheci meus bisavós para confirmar, mas posso dizer que meus tios têm essa característica, eu não, nem minhas filhas. Costumo olhar pés e mãos de meus parentes para procurar essas semelhanças e elas existem.
      É interessante porque aqueles pés foram adaptados para uma vida dura de muita caminhada, ele na estrada, ela dentro de casa, o dia todo indo e vindo pela cozinha e terreiro. Cidadãos do Brasil profundo onde a Constituição não chega em sua integralidade, pessoas que de tanto sofrer acostumaram em ser simples, pobres de dinheiro, desinteressados em coisas que não fossem totalmente necessárias. Pessoas com idoneidade antiga, severas com a verdade e honestidade, mister de América, Europa e África. Costumes e estrutura primitiva quase não mais reproduzida na era dos ultraprocessados e da luz artificial.
      Se vivos, meus avós teriam 100 anos. Nasceram no mesmo ano. Vovó quase chega, mas resolveu partir aos 96 nos explicando que já estava bom. Preservamos suas imagens e histórias de desacontecimentos construindo mitos significativos que nos mantém coesos e orgulhosos de nossas superações, genética e sobrenomes. Sabemos, todos nós, com a mais pura clareza, que somos resultado daqueles pés desengonçados que nunca entraram numa escola ou em salões de nobreza. Pés feios para os olhos, mas perfeitos para a natureza que os adaptou para manter nossa linhagem e nos oferecer as oportunidades de contar essa pequena história do mundo.

 


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