Reconheci-o pelo
inconfundível perfil. O manquejado era o que nele havia de diferente. Sem
hesitar, parei o carro:
— Balão, entre que deixo você
em casa.
— Obrigado. Tenho que andar,
foi o médico quem disse.
E seguiu a
caminhada, sem mais uma palavra. Fiquei meio confuso, em dúvida se a negativa à
carona seria mesmo para seguir a recomendação médica ou uma demonstração de que
preferia manter o distanciamento estabelecido desde o tempo do cinema.
Tenho quase
certeza de que ele me reconheceu. Não pelo nome, claro. Mas pela inevitável
associação de que eu seria um daqueles meninos que frequentavam o PAX. Ah,
disso não tenho dúvida! Como, também, sou levado a crer que, enquanto viveu e
circulou pelo centro da cidade, ele deve ter sido abordado por muitos dos
garotos de outrora. Sou capaz de apostar todas as minhas fichas de que suas
respostas às abordagens devem ter sido quase sempre no mesmo diapasão: curtas e
sisudas. Mas, por incrível que pareça, sem expressar uma antipatia gratuita.
Dava para perceber que era mesmo o seu jeitão. Sei que a linha é tênue, porém
quem conviveu com Balão, mesmo que de forma rápida e esporádica, entenderá o
que eu digo.
Na memória
afetiva de quatro ou cinco gerações de mossoroenses, a figura de Balão, certamente,
estará bem delineada. Seu corpanzil a nos 'recepcionar' à porta do cine,
recebendo o ticket de ingresso e conferindo a carteira de estudante com as
nossas fuças. Tudo isso com a mesma rapidez e precisão com que colocava o papel
recebido na urna que lhe servia, também, de suporte para descanso da perna. Sem
conversa. Se fosse para barrar alguém, fazia-o sem alterar a expressão da face.
Balbuciava algo que significava o estorvo à sessão. Ponto.
Para nossos
olhos infantis, pouca diferença havia entre Balão e as majestosas pilastras do
vestíbulo do PAX. A única diferença era que, daquela coluna humana,
esperávamos o gesto de concordância para transpormos o umbral. Seria daquele
guardião que adviria, ou não, o aceno que delimitaria o êxito do final de
semana. Afinal de contas, no correr dos dias, aguardávamos, ansiosos, para
vibrar com a pontaria certeira de Trinitty, com a esgrima do mascarado Zorro e
com as trapalhadas do sargento Garcia. Ou então com O Gordo e o Magro a nos
provocar gargalhadas que quase tomavam o nosso curto fôlego. E outros tantos
heróis que povoavam as nossas imaculadas mentes. E, sem o 'passe' de Balão,
tudo estava perdido.
Isso sem
mencionar a ansiedade de nos postarmos à frente daqueles ventiladores gigantes
que flanqueavam o palco principal, onde desfraldaríamos nossas camisas 'volta
ao mundo', antes do badalar que iria nos aquietar nas disputadas cadeiras das
primeiras filas.
Depois dessa
acomodação, ao escuro que se seguia, esperávamos o zanzar da lanterna que,
vigilante, pastoreava as nossas danações. Diga-se de passagem, danadezas que nada representavam de
gravidade: um assobio com dois dedos na boca - que, confesso, nunca aprendi - um
chiclete pregado na parte inferior do assento ou um desastroso derramar das
alvas pipocas - involuntário, registre-se, pois ninguém era bobo de fazê-lo a
propósito.
Tudo isso me
veio à mente, quando, ainda acomodado no assento do carro, vi-o seguir, em
passos lentos, para as bandas do bairro Pereiros. De relance, passou pela
cabeça segui-lo para ver onde ele morava e insistir em ajudá-lo com algo por
conta da enfermidade. Não reuni coragem. Ponderei que a vida daquele personagem
não poderia sofrer invasão. Deveria permanecer enigmática, como sempre o fora.
Sem aproximações nem intimidades. Que tudo seguisse como sua própria
identidade: nunca revelada.
Balão. Balão do
PAX. Só isso bastou para que ele vivesse seus dias nessa dimensão terrena.
Creio mesmo que, na única vez que ele mudou de posição, deve ter sido acolhido
pelo porteiro do céu com galhardia: “Entre, Balão, e escolha o melhor lugar para
assistir - e viver - à película da Paz. Desse bilhete de ingresso você se fez
merecedor”.
*David de
Medeiros Leite – Doutor em Direito. Professor da UERN.
* Texto originalmente publicado na Revista
da Academia Norte-Rio-Grandense de Letras, N° 43.
Você disse bem, David, cinco gerações têm Balão como referência de vesperais em Mossoró. O mais famoso dos bilheteiros. Tive o privilégio de conhecer um pouco mais de Balão, já no final da vida dele, quando descobri que uma parente minha era a sua esposa. Talvez um dia eu conte um pouco de sua história pessoal.
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