quinta-feira, 16 de julho de 2020

BALÃO



Balão à frente de colegas do Pax.


 Por David de Medeiros Leite*

Reconheci-o pelo inconfundível perfil. O manquejado era o que nele havia de diferente. Sem hesitar, parei o carro:
      — Balão, entre que deixo você em casa.
     — Obrigado. Tenho que andar, foi o médico quem disse.
  E seguiu a caminhada, sem mais uma palavra. Fiquei meio confuso, em dúvida se a negativa à carona seria mesmo para seguir a recomendação médica ou uma demonstração de que preferia manter o distanciamento estabelecido desde o tempo do cinema.
  Tenho quase certeza de que ele me reconheceu. Não pelo nome, claro. Mas pela inevitável associação de que eu seria um daqueles meninos que frequentavam o PAX. Ah, disso não tenho dúvida! Como, também, sou levado a crer que, enquanto viveu e circulou pelo centro da cidade, ele deve ter sido abordado por muitos dos garotos de outrora. Sou capaz de apostar todas as minhas fichas de que suas respostas às abordagens devem ter sido quase sempre no mesmo diapasão: curtas e sisudas. Mas, por incrível que pareça, sem expressar uma antipatia gratuita. Dava para perceber que era mesmo o seu jeitão. Sei que a linha é tênue, porém quem conviveu com Balão, mesmo que de forma rápida e esporádica, entenderá o que eu digo.
    Na memória afetiva de quatro ou cinco gerações de mossoroenses, a figura de Balão, certamente, estará bem delineada. Seu corpanzil a nos 'recepcionar' à porta do cine, recebendo o ticket de ingresso e conferindo a carteira de estudante com as nossas fuças. Tudo isso com a mesma rapidez e precisão com que colocava o papel recebido na urna que lhe servia, também, de suporte para descanso da perna. Sem conversa. Se fosse para barrar alguém, fazia-o sem alterar a expressão da face. Balbuciava algo que significava o estorvo à sessão. Ponto.
     Para nossos olhos infantis, pouca diferença havia entre Balão e as majestosas pilastras do vestíbulo do PAX. A única diferença era que, daquela coluna humana, esperávamos o gesto de concordância para transpormos o umbral. Seria daquele guardião que adviria, ou não, o aceno que delimitaria o êxito do final de semana. Afinal de contas, no correr dos dias, aguardávamos, ansiosos, para vibrar com a pontaria certeira de Trinitty, com a esgrima do mascarado Zorro e com as trapalhadas do sargento Garcia. Ou então com O Gordo e o Magro a nos provocar gargalhadas que quase tomavam o nosso curto fôlego. E outros tantos heróis que povoavam as nossas imaculadas mentes. E, sem o 'passe' de Balão, tudo estava perdido.
    Isso sem mencionar a ansiedade de nos postarmos à frente daqueles ventiladores gigantes que flanqueavam o palco principal, onde desfraldaríamos nossas camisas 'volta ao mundo', antes do badalar que iria nos aquietar nas disputadas cadeiras das primeiras filas.
     Depois dessa acomodação, ao escuro que se seguia, esperávamos o zanzar da lanterna que, vigilante, pastoreava as nossas danações. Diga-se de passagem, danadezas que nada representavam de gravidade: um assobio com dois dedos na boca - que, confesso, nunca aprendi - um chiclete pregado na parte inferior do assento ou um desastroso derramar das alvas pipocas - involuntário, registre-se, pois ninguém era bobo de fazê-lo a propósito.
     Tudo isso me veio à mente, quando, ainda acomodado no assento do carro, vi-o seguir, em passos lentos, para as bandas do bairro Pereiros. De relance, passou pela cabeça segui-lo para ver onde ele morava e insistir em ajudá-lo com algo por conta da enfermidade. Não reuni coragem. Ponderei que a vida daquele personagem não poderia sofrer invasão. Deveria permanecer enigmática, como sempre o fora. Sem aproximações nem intimidades. Que tudo seguisse como sua própria identidade: nunca revelada.
     Balão. Balão do PAX. Só isso bastou para que ele vivesse seus dias nessa dimensão terrena. Creio mesmo que, na única vez que ele mudou de posição, deve ter sido acolhido pelo porteiro do céu com galhardia: “Entre, Balão, e escolha o melhor lugar para assistir - e viver - à película da Paz. Desse bilhete de ingresso você se fez merecedor”.

  

*David de Medeiros Leite – Doutor em Direito. Professor da UERN.

 

* Texto originalmente publicado na Revista da Academia Norte-Rio-Grandense de Letras, N° 43.


1 comentário:

  1. Você disse bem, David, cinco gerações têm Balão como referência de vesperais em Mossoró. O mais famoso dos bilheteiros. Tive o privilégio de conhecer um pouco mais de Balão, já no final da vida dele, quando descobri que uma parente minha era a sua esposa. Talvez um dia eu conte um pouco de sua história pessoal.

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