Por Vanda Maria Jacinto
Escritora,
autora do livro Rabiscando os caminhos da prosa
E-mail: v.m.j@hotmail.com
Juntando e
ponteando os retalhos das lembranças, veio-me à mente o dono de uma mercearia,
onde o meu pai comprava fiado, em caderneta. Isso, no início da década de
sessenta.
Salvador era o
seu nome. Um
italiano alegre e alvacento,com as
maçãs do rosto rosadas, o que
lhe conferia um ar de bondoso – e,
na verdade, era. Sempre simpático,
recebia a todos com cortesia.
Adorava esse
passeio diário! As compras da manhã sempre foram da minha responsabilidade: os
pães – sovado, filão – e o leite, em garrafas de vidro, às vezes um tablete de
margarina Claybon ou Primor – dependendo do tamanho da conta, até a data
vigente...
A mercearia
ficava distante da minha casa uns três quilômetros, mais ou menos, o que, para
mim, no frescor dos nove anos, não era nada.
Percorria a
distância sem sentir, ainda ia saltitando, pinoteando – como minha mãe dizia – o que justificava os joelhos arranhados.
Do caminho,
conhecia cada palmo: a horta da avó da minha amiga Júlia, os belos jardins de
algumas casas e cada flor ou cada fruto, alheios.
Quase sempre de
bom humor, cantarolava o tempo todo e tinha uma mania – que, aliás, tenho até
hoje – de balbuciar cantigas, relacionadas ao que observo ou penso. É algo
automático. Penso que seja coisa de quem tem um parafuso a menos.
Assim, lá ia eu
pelo caminho, apreciando tudo. Quando passava junto a cerca de uma das casas,
onde um pé de alecrim crescia exageradamente, cantarolava: “Alecrim, alecrim
dourado, que nasceu no campo, sem ser semeado”. Ou, então, palmilhando o
calçamento: “Se essa rua, se essa rua, fosse minha…”.
E, assim, seguia o meu
caminho, até aparecer outra coisa interessante. Pense como o meu olhar captava
tudo num ângulo de quase 360 graus.
Numa das casas,
havia uma amoreira que era a minha paixão. Sempre gostei de frutas vermelhas.
No mês de setembro, época da frutificação, a calçada ficava repleta – haja
vista o pé está próximo ao muro. Eu me esbaldava. Sem dúvida, essa era a minha
mais demorada parada no trajeto até a mercearia.
O interessante é
que tudo acontecia comigo. Sempre havia um caso para contar ao chegar em casa.
Um dia, esquecia de trazer algo extra que minha mãe pedira – alguma
mistura para o almoço.
Noutros, assustava-me com cachorros bravos, deixando
escorregar e quebrar, sem querer, o litro de leite; aconteceu mais de uma vez,
pois mal conseguia segurar, em minha pequena mão, o gargalo grosso do litro.
Naquele tempo não havia as sacolas de plástico de hoje; por vezes, os pães
iam ao chão também. Contudo, esse deslize era mais fácil de esconder do olhar
perspicaz de minha mãe.
Mas, a mais
intrigante história que vivi foi, na verdade, apavorante: naquele tempo, a
maior parte dos fogões era a carvão, portanto, na madrugada, o carvoeiro já
passava com sua carroça, entregando os sacos de carvão. Um português, já dos
seus sessenta anos, Senhor João, era o carvoeiro que entregava lá em casa – um
homem de rosto encardido. Tinha uma égua negra, linda. Mas, temperamental.
Vez por outra, ela desembestava rua acima, e só se ouviam os gritos do
português, xingando até a quinta geração da pobrezinha. Quando terminava as entregas, ele deixava a égua pastando, próxima do caminho que eu fazia
todos os dias.
Entretanto, raramente a égua estava por perto. Nem preciso dizer
que morria de medo dela, né?
Certa manhã, lá
ia eu, pulando e cantando, a caminho da mercearia e, juro, não sei o que me
entreteve, mas, quando vi, estava de cara com a égua. Soltei tamanho grito que
assustou a danada, que saiu em disparada atrás de mim.
Nunca corri
tanto em minha vida! Não via ninguém na rua para me socorrer. Desesperada, fui
para a calçada, na esperança de encontrar algum portão aberto e, acredite,
depois de quase morrer sem fôlego, entrei na casa da amoreira. Lá, tinha
certeza de que abriria o portão – inúmeras vezes o abri para pegar amoras.
Entrei, fechei-o com tanta força, que a dona da casa saiu em meu
socorro. Passado o susto, trouxe um copo com água, que bebi quase num só
gole.
A égua
resfolegava contra o portão, ainda agitada. Eu, toda encolhida, mal respirava.
O coração parecia que ia sair pela boca.
Agradeci à
senhorinha que me acolheu, esperei a égua tomar um novo rumo e, embora
assustada, tive que continuar a jornada até a mercearia. Mais do que nunca, o
meu olhar garimpava o entorno, com medo de que a égua voltasse.
Sinceramente, se já gostava de amoras, daquele dia em diante elas passaram a ter um novo
gosto para mim. Além da doçura costumeira, tinham, agora, sabor de segurança,
de proteção. Se, em meus devaneios pelo caminho, nunca tivesse parado ali para
apreciar aqueles pequeninos frutos, não teria me valido de tão precioso abrigo.
Benditas amoras!
Como é bom, voltar no tempo e
reviver cada instante mágico, só
meu, mas que me fazem feliz até
hoje.