Por Lúcia Rocha, jornalista
Embora reconhecido internacionalmente, Câmara Cascudo faleceu sem que a maioria de seus conterrâneos conhecessem sua obra. A juventude, principalmente, sequer sabe que seus livros são testemunhas de que esse grande folclorista viveu com intensidade pelos sertões. Senão não teria escrito com tantos detalhes tudo que se refere a folclore e o sertão.
Filho único de um dos homens mais ricos de sua época, Cascudo foi criado por duas amas, a quem se deve seu interesse pelo folclore, pois não cansava de ouvi-las cantando as cantigas de ninar. Adolescente ainda, estudou em um externato feminino, depois em um colégio religioso, para conviver com meninos. Mais adiante pegou dois professores particulares selecionados pelo grupo familiar entre os mais qualificados da comunidade. O pai, então, bancou um jornal para que Cascudo publicasse seus escritos.
Cascudo iniciou o curso superior na Escola de Medicina da Bahia. Em seguida transferiu-se para o Rio de Janeiro, dando continuidade ao curso, até o quarto ano. Isso, por volta de 1922, quando assistiu a Semana de Arte Moderna e iniciou um relacionamento de amizade com Mário de Andrade, que trouxe ao Rio Grande do Norte. Mas Cascudo desistiu do curso médico e ingressa na Faculdade de Direito do Recife, onde passou a conviver com intelectuais e artistas.
O pai de Cascudo era um homem tão rico que chegou a ter mais de mil afilhados. O pai, que dissera a Cascudo o que era o sertão e o levara ainda menino na serra de Martins, em busca de clima. O pai que fizera um cinema em Natal com sessões diárias que só iniciavam depois que sua esposa chegasse, morreu pobre e, para sobreviver, Cascudo teve que lecionar, tornando-se depois destacado folclorista e etnógrafo. Um nome tão conhecido entre seus conterrâneos, quanto no exterior.
O mais admirável em sua obra é a riqueza de detalhes com que escrevia, sobretudo com as coisas relacionadas ao sertão.
O leitor encontra em cada capítulo de Tradições Populares da Pecuária Nordestina uma descrição de tudo o que diz respeito ao bumba-meu-boi, vaqueiros, curandeiros, figuras lendárias, o aboio e vocabulário sertanejo.
Cascudo consegue descrever nos mínimos detalhes a fazenda de gado: a casa de taipa, suas divisões físicas. “...Muitas e muitas casas tinham apenas duas portas, a de entrada e a dos fundos, pegada à cozinha”; a respeito dos cômodos: “... o quarto grande era, em boa percentagem, despensa. Guardavam ali os queijos...”; sobre o cardápio: “... bebia-se pouquíssimo leite puro, cru ou cozido, leite era com alguma coisa, leite com jerimum, com batata – indigesto demais – com farinha...”; sobre rotina: “Os homens acordavam ao quebrar da barra para a labuta do curral...”; sobre costumes: “antes de dormir a meninada lavava os pés e ficava ouvindo a conversa dos grandes...”; ou então: “almoço às nove, jantar às três ou quatro, ceia às seis...”; profecias: “... bodes e carneiros, en rolados na denominação comum de capados, anunciavam chuvas quando investiam nos chiqueiros, brincavam com as cascas de feijão e sabugos de milho...”, leitura: “... jornais não apareciam nas fazendas comuns de meio termo. Livros, eram as novelas...”.
Cascudo compara o senhor do engenho do fazendeiro, pelo trabalho executado, expondo a diversidade do ambiente de formação de seus homens. Compara o trabalho humano, escravo até 1888 e o regime de tarefa contratual ou jornaleiro.
As disparidades entre a vida do senhor do engenho e a de seus homens: alimentação, indumentária e divertimentos.
Segundo Cascudo, a festa mais tradicional do ciclo de gado nordestino é a vaquejada. Opinião que não difere da de quem conhece e admira tal esporte. “Mas na vaquejada se fazia também muitos negócios: vendia-se e trocava-se”.
Continua sobre vaquejada: “A reunião de tantos homens, essência de divertimentos, distância vencida, tudo concorria para aproveitar-se o momento. Era a derrubada, prova legítima de habilidade e força, torneio sagrado de famas, motivo de cantadores que imortalizavam a façanha”. Assim, resume Cascudo, o que ainda hoje se cultiva como sendo em algumas regiões uma autêntica festa nordestina.
O bumba meu boi, boi catemba, bumba, boi de reis, boi bumbá, reis do boi - como é conhecido em algumas regiões - é por demais conhecido e amado no sertão agreste e litoral, nas fazendas e nos engenhos de açúcar. As figuras centrais são de dois vaqueiros negros: Birico e Mateus, Fidélis e Bastião ou Gregorio, posteriormente incluíam elementos femininos - homens vestidos de mulher - Catarina ou Rosa. As ‘damas’ são rapazes sob a roupa feminina.
Cascudo cita que o cavalo é o animal favorito. Além do mais, é companheiro aliado do homem e do vaqueiro. Andar a cavalo e tê-lo era título de elevação social e ninguém montava sem permissão do dono.
Eis o Cascudo reconhecido mundialmente e, ainda, desconhecido de jovens que não receberam, talvez, o estímulo e acessos necessários à sua obra.
Luís da Câmara Cascudo nasceu em Natal, em 30 de dezembro de 1898 e faleceu também em Natal, em 30 de julho de 1986, foi historiador, folclorista, antropólogo, biógrafo, advogado e jornalista. Deixou mais de 150 obras.
Publicado no jornal O MOSSOROENSE , em 29 de novembro de 1987
CASCUDO NA INTIMIDADE
Quem era Luís da Câmara Cascudo na intimidade? Segundo sua filha Ana Maria, a mãe de Cascudo, dona Sinhazinha, contou-lhe que Cascudo foi uma criança que lia demais, era bastante namorador e que jamais viu uma pessoa tão amiga dos amigos como ele. Quando estudava medicina em Salvador, transferiu-se para o Rio de Janeiro, mas só estudou até o quarto ano, não prosseguindo o curso, porque o pai faliu. Cascudo teve que migrar para Recife, onde fez o curso de Direito e lecionava ao mesmo tempo. Ele gostaria de ter concluído o curso de medicina, pois não gostou de ter feito Direito, lembra Ana Maria. Certa vez, Cascudo a viu atuando como promotora e disse que aquilo era muito difí cil, não sabia como a filha conseguia atuar. Ana Maria é advogada e jornalista, à época do elogio, fora a promotora mais jovem do Brasil.
Cascudo só teve dois filhos porque tinha medo do mundo, das guerras. Achava que todo homem devia ter uma filha porque era amor à primeira vista e um dia esta seria filha e mãe do próprio pai.
Ele adorava champanhe e em todas as refeições tomava vinho. Apreciava as comidas regionais, bem como as internacionais, principalmente, enlatados: biscoitos ingleses, salsichas, presunto, queijo do reino, bolo inglês e chocolates americanos. A música lhe marcou muito porque recebia tanto a regional como a clássica ao mesmo tempo. Cantores famosos cantaram para ele. Gostava de dançar tudo, de twisty a baião. Tocava piano e uma das maiores emoções que teve na vida foi, certa vez, estar tocando em casa, quando marinheiros americanos passavam na hora e fizeram coro, acompanhando-o. Cascudo os fez entra e foi ‘aquela farra’.
Cascudo conheceu a futura esposa, Dália, através de uma de suas irmãs mais velhas, de quem era amigo. Cascudo tinha então, dezesseis anos de idade e Dália, apenas cinco. Ele chegou até a presenteá-la com uma boneca. Como era uma pessoa super tímida, Dália sempre procurou se atualizar, saber tudo para não fazer feio frente ao Príncipe do Tirol, como Cascudo à época era conhecido, visto ser um dos rapazes mais ricos de Natal e por morar no bairro do Tirol. Cascudo passou a andar com uma lapela com a inscrição Dália, mas dizia que namorava a irmã dela, para conquistá-la.
Cascudo e Dália casaram-se em 1929, tendo ele trinta anos e ela, dezesseis. Como era machista, não deixou a esposa prosseguir os estudos escolares. Para isso, contratou professores particulares que lhes davam aulas de português, francês e latim.
Como viajava bastante, quando Cascudo voltava ficava até altas horas conversando com Dália, contando as novidades. Mas ela não acreditava em nada do que ele dizia. Jurava que nunca havia traído-a. Nem mesmo em Maria Boa, onde andava sempre.
Além de galanteador, gostava de falar sobre etiqueta e ele próprio fugia à regra. Era sempre metido na roda das moças e dos netos. Camila lembra que na festa de Bodas de Ouro a fez trocar o vestido porque achou feio.
Certa vez, Cascudo viajara e Dália mandou passar um pano na biblioteca. Quando retornou, ficou com raiva e a ameaçou de separação. Passou um mês sem lhe dirigir a palavra.
Ana Maria recorda que a primeira imagem que tem do pai é sentada no seu colo, ouvindo estórias de trancoso. Acompanhava-o aos foguedos populares com Djalma Maranhão. Em Areia Preta, ouvia estórias de pescadores que conversavam com o pai, sentado numa rede, com todos ao redor ou tomando banho de piscina na casa do ex-governador Sílvio Pedrosa, em Pirangi, falando em inglês e francês. São boas recordações que traz consigo, como também ir ao cinema, assistir filmes juntos, ir ao teatro, onde ele lhe explicava música clássica, ópera e outros gêneros.
Para Ana Maria, era prazeroso ser filha de Cascudo, como também foi péssimo. Sempre lhe cobravam inteligência. Aos sete anos de idade, discutiu com uma professora do Colégio Imaculada Conceição porque fez um trabalho e a mesma mandou os parabéns ao pai, pelo mesmo. Na verdade, Cascudo se encontrava em Portugal e a discussão foi grande. O pai a incentivava muito nos estudos. Dizia que estudar era um bem para si próprio, nunca para os outros e que todo indivíduo deveria estudar.
Quando Ana Maria voltava da faculdade e tinha algo para contar ao pai, caso ele estivesse na biblioteca, tinha que esperar que de lá saísse. Pois Dália não deixava ninguém interrompê-lo.
Cascudo foi professor da filha, na Faculdade de Direito, mas não a ajudava em nada. Quando fazia algum trabalho para sua disciplina, ele ficava curioso e perguntava onde encontrara aquilo.
Ficava chateado quando a filha não levava os namoros muito a sério. Queria que namorasse os rapazes da terra, de família conhecida e jamais com militar para não levá-la para longe. Mesmo assim, Ana se casou com um militar paulista, enviuvando pouco depois.
O problema de surdez teve início quando retornou da África, em 1963. Reclamava do ouvido, mas achava que foi do sol africano. Naquele ano, nasceu a primeira neta, Daliana, filha de Ana Maria. Daliana é psicóloga e já foi coordenadora do Memorial Câmara Cascudo, em Natal. Conta Daliana que, além da inteligência, o que mais lhe marcou do avô foi sua humildade. Cascudo recebia a todos da mesma maneira, desde um chefe de estado a um pescador do Canto do Mangue. Conhecia os ancestrais de todo mundo. Daliana tinha o avô como um pai, pois morou com ele até se casar. A família sempre morou junta: filha, genro e netos. Fernando, o outro filho de Cascudo, saiu de casa cedo para estudar em Recife. Fernando foi um dos diretores da extinta Rede Manchete de Televisão, no Rio de Janeiro, onde mora.
Daliana tomou um grande susto quando soube da fama de homem culto e intelecto do avô. Sendo este bastante humilde, nunca pensou que fosse tão famoso e, a partir dali, passou a admirá-lo mais ainda, do ponto de vista intelectual.
Do relacionamento amoroso e afetivo que mantinham, o avô passou a ajudar Daliana nas tarefas escolares. Lia os livros dele, bem como os indicava aos amigos. Certa vez, Cascudo viu Daliana lendo Agatha Christie e quis saber do que se tratava. No outro dia já tinha devorado a coleção inteira da autora. Daliana era a neta mais querida e se relacionava bem demais com o avô. A diferença de idade nunca foi problema para a diversidade de assuntos que comentavam. Nunca deixou os filhos frequentarem sua biblioteca para não deixá-la em desordem, o mesmo não acontecendo com os netos. Cascudo não teve controle sobre estes. Como era extravagante em relação a comida, tinha sempre a vigilância constante de Dália. Devido sua alta taxa de glicose, não podia exagerar no açúcar, porém comia chocolate com os netos. Escondido.
Daliana não chegou a conhecer os pais de Cascudo. Quando nasceu, o bisavô já havia falecido. Sempre soube que a bisavó, dona Sinhazinha, conheceu-a ainda bebê. Daliana admira o bisavô, Coronel Cascudo, porque ele deu todas as condições para que o filho fizesse o que quisesse. Cascudo teve tudo que quis. Como sempre queria ter livros estrangeiros, o pai comprou uma máquina para microfilmar os livros que quisesse. Antes mesmo que chegassem ao Brasil.
Dália escrevia bem. Era quem tratava da correspondência do marido nos últimos anos. Cuidava bastante de Cascudo e tinha precaução em dar-lhe más notícias, especialmente, as fúnebres. Para isso o preparava antes. Dália morou no mesmo casarão da Rua Junqueira Aires, com uma irmã de criação de Cascudo, além de uma empregada de muito tempo.
VISITAS ILUSTRES - Cascudo recebia em sua residência a visita de pessoas de todas as classes sociais, inclusive, algumas importantes e famosas. Ele e família conheceram artistas, chefes de estado, escritores, personalidades e celebridades de todas as áreas, porque essas visitas eram constantes e programadas por órgãos do governo. Destas visitas, a neta Daliana ri quando recorda que Roberta Close foi visitá-lo e não o avisaram que a mesma era um travesti. Cascudo a beijou bastante e quando a mesma foi embora, ele fez os maiores elogios, disse que nunca viu mulher tão bonita como aquela. Quando o alertaram que se tratava de um homem, Cascudo não acreditou. Ele disse que todos estavam enganados.
Em outra ocasião, Diógenes da Cunha Lima o visitava e quis saber da empregada de Cascudo, se ela achava o patrão um homem preparado. Ele disse que não. Porque vivia estudando. Que ainda estava se preparando.
Daliana admirava o avô de diversas formas: primeiro porque foi à luta quando o pai perdeu tudo. Como gostava de lecionar, era uma honra ser chamado de professor. O que gostaria de ter do avô é a humildade e a capacidade intelectual que atingia todo mundo e era entendido por todos. Apesar de ter um gênio forte, não chegava a ser empecilho para ninguém. Para ela, sua grande virtude foi a diversidade de sua obra.
Cascudo sempre tinha histórias e estórias para contar e nunca cansava ninguém, pois era um excelente orador. Passou muitas histórias e estórias para os filhos e estes para os netos.
Beijava homens e mulheres sem distinção. Quando achava uma pessoa bonita, dizia logo, não poupava elogios, independente do sexo. Gostava também de mulheres vaidosas.
Foi através do neto Newton, que Cascudo começou a gostar de futebol tornando-se torcedor do Vasco da Gama. O avô lhe contava muitas histórias sobre sua infância e todo dia, pela manhã e à noite o abençoava gesticulando com a mão em forma de cruz.
Newton foi incumbido pelo avô desde cedo a comprar charuto e chocolate, escondido da avó e mexia em tudo. Como fazia talha em madeira, o avô expunha na biblioteca com o maior prazer.
À exemplo de sua mãe, Ana Maria, sempre cobravam de Newton estudos no colégio pelo fato de ser neto de Cascudo. Queriam que fosse o melhor aluno. Procurava, então, estudar muito para saber de tudo. Uma vez, estava numa festa quando alguém perguntou: “Neto de Cascudo bebe?” Newton respondeu que Cascudo também bebia.
Newton achava o avô tão humilde e simples, que quando recebia uma condecoração ou prêmio, perguntava se merecia aquilo. Newton também levava os amigos para conversar com o avô e, quando estavam acompanhados das namoradas, Cascudo as chamavam de ‘vítimas’. Às vezes o levava na Rampa e lá, Cascudo tomava um conhaque, fumava um charuto e depois de um passeio na praia voltavam para casa.
Quando recebia a visita de um Presidente da República dizia ao neto:
- Você viu? Um presidente veio visitar o avô!
Cascudo recebeu em sua casa a visita de quatro presidentes: Getúlio Vargas, Juscelino Kubstschek, Costa e Silva e João Figueiredo.
Quando da visita de Figueiredo, Cascudo quis saber dele, quem teve a idéia da visita, tendo o mesmo respondido:
- Às vezes, um presidente tem boas idéias.
Cascudo deu ao presidente o livro Rede de Dormir e o recomendou para ler nas horas de insônia, tendo o mesmo respondido:
- Só me dá insônia mulher feia e cavalo manco.
Câmara Cascudo também enveredou pela política. Contou ao neto que o colocaram numa chapa para deputado estadual a contragosto. Não deu um passo durante a eleição e, eleito, aceitara porque achava que ia fazer algo pela cultura. Três dias depois tinha o mandato cassado.
Uma vez Newton ouviu do avô: “Ainda bem que fiquei pobre para ser professor, porque talvez papai não gostasse”. Espirituoso, alegre e teimoso, Cascudo detestava cortar unhas, cabelos e tomar remédio.
A última obra seria Prelúdio da Noite, onde falaria sobre a morte, não o fazendo porque não sabia ditar, somente batia à máquina, porém não tinha mais condições.
Newton está concluindo um livro sobre o avô famoso, onde não cita uma obra sequer dele. Chamar-se-á Luis da Câmara Cascudo, Meu Inesquecível Avô, que será prefaciado por Enélio Petrovich e terá ‘orelhas’ de Diógenes da Cunha Lima. Quando o mostrou ao avô há dois anos, este ficou muito emocionado.
Camilla Cascudo Barreto nasceu na mesma data do avô, setenta e dois anos depois. Tem boas recordações dele, principalmente pelas preferências culinárias. Cascudo adorava ‘raivas’, ‘suspiros’, beterrabas com açúcar, iogurte, Toddynho e desenhos animados, especialmente A Pantera Cor de Rosa, que assistia comendo Leite Moça. Camilla acha que nos últimos tempos, ele só não ouvia a voz humana, mas quanto a música devia ouvir alguma coisa. Talvez gostasse tanto da pantera, porque não há vozes nesse desenho, só a música. Ela fez um livro escondida do avô, No Reino das Joaninhas, e publicou aos nove anos de idade. Ele não gostou de não ter-lhe contado nada, mas ficou emocionado demais e orgulhoso da neta.
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