sexta-feira, 15 de outubro de 2021

NAQUELA MESA

                         

                                                                Ary Araújo e família


Por Marcos Araújo

       “E nos seus olhos era tanto brilho
         Que mais que seu filho
         Eu fiquei seu fã”, Sérgio Bittencourt  

         

      Biblicamente, a mesa sempre foi um lugar importante para a família e a formação.
          No Antigo Testamento, a palavra é usada pela primeira vez em Êxodo, 25:23. Nesse capítulo, Deus entregou a Moisés instruções detalhadas sobre o mobiliário a ser colocado no Tabernáculo, sendo a mesa o primeiro lugar oficial de reunião para o Seu povo: “
Também farás uma mesa de madeira de acácia; o seu comprimento será de dois côvados”.
        
No Novo Testamento, a mesa e o momento da refeição sempre foram elementos pedagógicos usados por Cristo para ensinar e transformar a vida dos seus discípulos, sendo muito destacada - até nas artes pictóricas - a cena da última ceia - fato relatado quatro vezes em Mateus 26:17-30Marcos 14:12-26Lucas 22:7-39 e João 13:1).

        Aproveitando da simbologia da mesa, posso dizer que na casa dos meus pais, era no entorno dela o principal lugar de nossos encontros. Na minha infância, a escassez alimentar fazia da mesa um local de partilha entre os filhos e, ao mesmo tempo, ambiente de angústia para os nossos genitores, que se alimentavam apenas depois que toda a prole se dava por minimamente satisfeita.
           Também na mesa, éramos disciplinados, com palavras ou 'argumentos' mais enérgicos.
            De certa feita, com uns quatro anos de idade, virei um prato de comida, num desperdício imperdoável à nossa carência. Na mesma hora, recebi um forte tapa, cujos efeitos educacionais servem até hoje. Meu irmão, Evans, o caçula, cometeu idêntica desobediência, com imediata sanção nos mesmos padrões.

        Depois, na nossa fase adulta, os filhos já dotados de renda própria, a mesa da casa dos meus pais se tornou um locus de fartura e de vários encontros memoráveis. Invariavelmente, o mentor e idealizador desses encontros era Seu Ary, o nosso pai. Para juntar a família, ele se fazia um prendado gastrônomo. Com alegria, passava a semana pensando nos quitutes e iguarias que propriamente prepararia para o almoço do domingo. Sua aptidão de mestre cuca sempre esteve voltada para a culinária nordestina, adorando preparar buchada, panelada, sarapatel e tripa de porco frita. Para as noras e netos, fazia doces e bolo de banana. Providenciava tudo sozinho, e passava a semana avisando aos filhos, apenas pelo prazer de vê-los reunidos à mesa.
           Enquanto se bebia e comia, a música imperava. Como bom artista, nosso pai também cantava e declamava algumas poesias. Com timbre espetacular, executava, à capela, canções desconhecidas - e ignoradas - aos tempos de hoje.
           Aliás, foi o nosso introdutor e professor da boa música. Cantava, sem destemor, em qualquer lugar. Era comum nas suas idas ao supermercado e à padaria deleitar os ouvintes com boleros, guarânias e tangos que nossos ouvidos eram afeiçoados: Francisco Alves, Adelino Moreira, Herivelto Martins e Nelson Gonçalves foram nossos comensais em muitos pileques. Índía, Meu Primeiro Amor, Farrapo Humano e Éramos Sete, suas canções  preferidas. Por vezes, sob a execução de Jerry, violinista, ele puxava o coro para um cordão de filhos desafinados acompanhar.
          Ele também gostava de festa e de reunir pessoas em torno da mesa. Na impossibilidade de juntar família e amigos na pequenez da casa, arranjou uma chácara, com a primeira providência de colocar uma mesa gigante, do tamanho do seu coração, que coubesse todos. E, nessa chácara, juntava aos que amava. Para sua tristeza, nos últimos meses, por dificuldade de mão-de-obra doméstica nos finais de semana, o 'almoço' dos domingos deixou de ocorrer.
      Como nosso pai era um historiador oral, etnógrafo, folclorista, poeta, cantor diletante e memorialista, o seu 'palco' era a mesa. A cada encontro, contava os seus 'causos'. Conhecíamos de cor e salteado suas aventuras, vez por outra aumentadas para impressionar os ouvintes. Como na canção: “Naquela mesa ele contava histórias, que hoje na memória eu guardo e sei de cor”.                                 Seus aniversários eram muito esperados – e festejados. Geralmente, duravam dois dias, porque sempre caia no Dia dos Pais. Terminava um aniversário, e ele já começava a planejar o do ano seguinte. Queria convidar todo mundo. A lista começava pequena, em torno de cem convidados, mas já chegou a mais de trezentos. Por ele, convidava a cidade inteira. A contenção vinha dos filhos. A vida para ele era uma festa e viveu intensamente. Sem regras ou limites verbais, nem falsos moralismos, adjetivava os amigos com palavras impublicáveis, para a galhofa do 'desonrado'. Com as mulheres, no entanto, sabiamente, se desdobrava em mesuras.               Depois de um AVC - Acidente Vascular Cerebral - e  alguns dias tristes, ele ultrapassou o umbral da imortalidade no dia 15 de agosto último.
      No transcurso de sua existência, amou, ensinou, cantou e encantou e, para alegrar o céu, Deus o chamou. Restou a mesa vazia. E assim, como na música-homenagem de Sérgio Bittencourt ao seu pai Jacob do Bandolim,
“Naquela mesa está faltando ele, e a saudade dele está doendo em mim”.

                                      


Biografia de Ary Araújo

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