Ary Araújo e família
Por Marcos Araújo
“E nos seus olhos era tanto brilho
Que mais
que seu filho
Eu fiquei seu fã”, Sérgio Bittencourt
Biblicamente, a mesa sempre foi um lugar importante para a família e a
formação.
No Antigo Testamento, a palavra é usada pela primeira vez em Êxodo, 25:23.
Nesse capítulo, Deus entregou a Moisés instruções detalhadas sobre o
mobiliário a ser colocado no Tabernáculo, sendo a mesa o primeiro lugar oficial
de reunião para o Seu povo: “Também farás uma mesa de
madeira de acácia; o seu comprimento será de dois côvados”.
No Novo
Testamento, a mesa e o momento da refeição sempre foram elementos pedagógicos
usados por Cristo para ensinar e transformar a vida dos seus discípulos, sendo
muito destacada - até nas artes pictóricas - a cena da última ceia - fato
relatado quatro vezes em Mateus 26:17-30; Marcos 14:12-26; Lucas 22:7-39 e João 13:1).
Aproveitando da
simbologia da mesa, posso dizer que na casa dos meus pais, era no entorno dela o
principal lugar de nossos encontros. Na minha infância, a escassez alimentar
fazia da mesa um local de partilha entre os filhos e, ao mesmo tempo, ambiente de
angústia para os nossos genitores, que se alimentavam apenas depois que toda a
prole se dava por minimamente satisfeita.
Também na mesa, éramos
disciplinados, com palavras ou 'argumentos' mais enérgicos.
De certa feita,
com uns quatro anos de idade, virei um prato de comida, num desperdício imperdoável
à nossa carência. Na mesma hora, recebi um forte tapa, cujos efeitos
educacionais servem até hoje. Meu irmão, Evans, o caçula, cometeu idêntica
desobediência, com imediata sanção nos mesmos padrões.
Depois, na nossa fase
adulta, os filhos já dotados de renda própria, a mesa da casa dos meus pais se
tornou um locus de fartura e de vários encontros memoráveis. Invariavelmente, o mentor e idealizador desses
encontros era Seu Ary, o nosso pai. Para juntar a família, ele se fazia um
prendado gastrônomo. Com alegria, passava a semana pensando nos quitutes e
iguarias que propriamente prepararia para o almoço do domingo. Sua aptidão de
mestre cuca sempre esteve voltada para a culinária nordestina, adorando
preparar buchada, panelada, sarapatel e tripa de porco frita. Para as noras e
netos, fazia doces e bolo de banana. Providenciava tudo sozinho, e passava a
semana avisando aos filhos, apenas pelo prazer de vê-los reunidos à mesa.
Enquanto
se bebia e comia, a música imperava. Como bom artista, nosso pai também cantava
e declamava algumas poesias. Com timbre espetacular, executava, à capela, canções
desconhecidas - e ignoradas - aos tempos de hoje.
Aliás,
foi o nosso introdutor e professor da boa música. Cantava, sem destemor, em
qualquer lugar. Era comum nas suas idas ao supermercado e à padaria deleitar os
ouvintes com boleros, guarânias e tangos que nossos ouvidos eram
afeiçoados: Francisco Alves, Adelino Moreira, Herivelto Martins e Nelson
Gonçalves foram nossos comensais em muitos pileques. Índía, Meu Primeiro Amor, Farrapo Humano e Éramos Sete, suas canções preferidas. Por vezes, sob a execução de Jerry, violinista, ele puxava o coro para um cordão de
filhos desafinados acompanhar.
Ele
também gostava de festa e de reunir pessoas em torno da mesa. Na
impossibilidade de juntar família e amigos na pequenez da casa, arranjou
uma chácara, com a primeira providência de colocar uma mesa gigante, do tamanho
do seu coração, que coubesse todos. E, nessa chácara, juntava aos que
amava. Para sua tristeza, nos últimos meses, por dificuldade de mão-de-obra
doméstica nos finais de semana, o 'almoço' dos domingos deixou de ocorrer.
Como nosso pai era um historiador oral,
etnógrafo, folclorista, poeta, cantor diletante e memorialista, o seu 'palco' era a mesa. A cada encontro, contava os seus 'causos'. Conhecíamos de cor e
salteado suas aventuras, vez por outra aumentadas para impressionar os
ouvintes. Como na canção: “Naquela mesa ele contava histórias, que hoje na
memória eu guardo e sei de cor”. Seus
aniversários eram muito esperados – e festejados. Geralmente, duravam dois dias,
porque sempre caia no Dia dos Pais. Terminava um aniversário, e ele já começava
a planejar o do ano seguinte. Queria convidar todo mundo. A lista começava
pequena, em torno de cem convidados, mas já chegou a mais de trezentos.
Por ele, convidava a cidade inteira. A contenção vinha dos filhos. A vida para
ele era uma festa e viveu intensamente. Sem regras ou limites verbais, nem
falsos moralismos, adjetivava os amigos com palavras impublicáveis, para a
galhofa do 'desonrado'. Com as mulheres, no entanto, sabiamente, se desdobrava
em mesuras. Depois
de um AVC - Acidente Vascular Cerebral - e alguns dias tristes, ele ultrapassou o umbral da imortalidade no
dia 15 de agosto último.
No transcurso de sua existência, amou, ensinou,
cantou e encantou e, para alegrar o céu, Deus o chamou. Restou a mesa vazia. E
assim, como na música-homenagem de Sérgio Bittencourt ao seu pai Jacob do
Bandolim, “Naquela mesa está faltando
ele, e a saudade dele está doendo em mim”.
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