domingo, 7 de junho de 2020

VIDA DE MULHERES


                                                                Aécio Cãndido



Aécio Cândido
é professor da UERN, aposentado, autor de Tempos do Verbo - poesia.

            “Qualquer vida dá um romance, basta ter quem conte”, parece nos dizer Clotilde Tavares no excelente De repente a vida acaba, lançado em dezembro de 2019 (Natal, M3 Editora, 245 pp). Narrado em primeira pessoa,  conta a vida de duas mulheres, Maria Eulina e Aline, amigas de juventude e unidas pelo resto da vida em suas diferenças.  Uma, festeira, namoradeira, disposta a todas as aventuras que a noite pode oferecer a uma mulher sozinha e livre, hedonista até os domínios da irresponsabilidade; a outra, travada, amarga, um cemitério de desejos nunca consentidos, a lamentar a vida que, por covardia, falta de aptidão ou recalque, nunca teve.
            Nascida na Paraíba, irmã do escritor e compositor Bráulio Tavares, autor dos clássicos Caldeirão dos Mitos e Nordeste Independente, Clotilde Tavares fez no Rio Grande do Norte uma carreira literária reconhecida.  Com uma produção regular e variada, indo da literatura infantil ao teatro e à crônica, Clotilde é também uma animadora cultural ativa. Mantém há mais de 10 anos o blog Umas & Outras (http://umaseoutras.com.br ) e uma página movimentadíssima no Facebook, coordena um clube de leitura com reuniões mensais, dá palestras, enfim, amplifica o quanto pode a existência da palavra escrita.
            Clotilde escreveu um romance grandioso, de enredo bem urdido, cheio de surpresas bem administradas e de ritmo agradável e exato. Um romance maduro, compacto, sem fissuras.
            Eu confio nos  meus arrepios, na respiração suspensa e na pressa da curiosidade atiçada. São meus sinais orgânicos de julgamento estético. E todos esses sintomas me vieram durante a leitura: muitos arrepios diante da cadência e da vibração das frases e dos desenlaces surpreendentes do enredo.
            O americano David Mamet, premiado autor de sucessos na Broadway, diretor de teatro e roteirista de cinema, sustenta que no teatro o trabalho do diretor é fundamentalmente fazer os atores falarem alto, a fim de que toda a plateia os escute, e de contar a história de modo a evitar que o espectador se levante da cadeira e vá embora. O trabalho do romancista é basicamente o mesmo: fazer o leitor, depois de abrir o livro, permanecer com vontade de mantê-lo aberto. Como sempre, a teoria não é muito complicada, complicado é colocá-la em prática.
            Clotilde faz isso em De repente a vida acaba. Faz isso atiçando a curiosidade do leitor, deixando que, em certa medida, ele preveja o que vai acontecer, mas, na maioria das vezes, surpreendendo-o com sequências diferentes daquelas que ele supôs. O leitor sente-se participante do texto, mas sabe que não é o dono dele. Sem humilhar o leitor, a autora se impõe. E o leitor, no fundo, quer isso, quer que o autor pareça mais inteligente do que ele.
            Clotilde produziu um romance formalmente ousado. São duas histórias entrelaçadas, fragmentadas, não lineares, recuperadas por jorros da  memória – um pequeno quebra-cabeça que não espanta o leitor, pelo contrário, estimula-o a montá-lo. As frases e os parágrafos, muitas vezes  longos, sustentam-se no ritmo sem tropeços e na atratividade do enredo.
            A história é esta: Maria Eulina viveu uma adolescência que não era sua. Seu pai queria um filho para fazê-lo escritor, mas como esse filho nunca veio, o sonho paterno se transferiu para ela. Embora incômoda, ela carregou estoicamente a expectativa familiar. Descobriria com o tempo que não tinha o talento que o ofício requeria.  Morto o pai e mergulhada a família numa certa penúria financeira, a mãe tomou para si a tarefa de não deixá-la esquecer do seu destino postiço, ao mesmo tempo em que também cobrava uma profissão de futuro e um casamento promissor. Sem gostar, sem suportar a proximidade de uma boca aberta, formou-se em Odontologia e favores políticos intermediados por um tio influente a fizeram funcionária pública no Inamps.  Não casou, mas teve um filho – mãe solteira, com o agravante de não saber quem era o pai da criança. Mais à frente, quando conheceu as circunstâncias da gravidez da sua empregada, também mãe solteira e também ignorante da identidade do pai de sua filha, ela criou uma nova categoria de filhos: os filhos do álcool, aqueles nascidos da loucura de uma bebedeira. A filha da empregada, no dizer da própria mãe, era filha de um litro de Montilla; o de Maria Eulina, respeitadas as diferenciações de classe social, era filho de um litro de uísque. Mas esse filho único, Luís Eduardo, que lhe anunciava grandes alegrias, morreu adolescente num acidente de carro. Ela alimentará com sofreguidão essa ferida para que não cicatrize nunca. Morta a empregada, ela adota sua filha, a quem cria providenciando o necessário, mas mantendo um afeto distanciado, como se este fosse exclusivo do filho que não existe mais. A menina a chama de Madrinha, mas ela nunca a chama pelo nome, é sempre “a menina”, a quem destina um certo desprezo agravado pela ingratidão latente. A “menina” faz um bom casamento, é feliz, e cuida dela com desvelos de boa filha. No entanto, é como uma mulher sozinha que ela se vê.  Na casa dos 70 anos, vivendo as doenças e as limitações da idade, Maria Eulina é uma mulher amarga, ressentida, aborrecida com tudo, enlinhada em seus preconceitos e frustrações, embora desfrute de uma vida financeiramente equilibrada e confortável. É em tudo uma dessas criaturas para quem a felicidade alheia é uma afronta. É uma mulher no ocaso, embora, a rigor, desde jovem tenha sempre vivido nessa zona.
            A realização como escritora chega-lhe de modo inusitado: vem através de um envelope grande abarrotado de folhas escritas, entregue por uma sobrinha-neta de sua amiga Aline, como vontade última da falecida. Há mais de ano não tinha notícias de Aline, não sabia de sua morte. No envelope está a história da amiga, contada de modo vivo e vibrante. Será este o romance que Maria Eulina nunca conseguiu escrever. 
            O livro de Clotilde trata da vida miúda, cotidiana, de duas pessoas comuns, com seus pequenos atos de grandeza e com as mesquinharias de igual tamanho. Mas a literatura serve para isso: para revelar na aparente simplicidade toda a complexidade da vida. Ela serve para mostrar que o inferno são os outros, como apontou Sartre, mas o céu também, como não podemos deixar de sublinhar.
            Em síntese, como bem demonstra Clotilde Tavares, toda vida contém matéria para um romance. O problema é que nem todo personagem tem a sorte de encontrar o seu autor. A doutora Maria Eulina e a porra-louca da Aline encontraram.

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