Aécio Cãndido
Aécio Cândido
é professor da UERN, aposentado, autor de Tempos do Verbo - poesia.
“Qualquer
vida dá um romance, basta ter quem conte”, parece nos dizer Clotilde
Tavares no excelente De repente a vida acaba, lançado em dezembro de
2019 (Natal, M3 Editora, 245 pp). Narrado em primeira pessoa, conta a vida de duas mulheres, Maria Eulina e
Aline, amigas de juventude e unidas pelo resto da vida em suas diferenças. Uma, festeira, namoradeira, disposta a todas
as aventuras que a noite pode oferecer a uma mulher sozinha e livre, hedonista
até os domínios da irresponsabilidade; a outra, travada, amarga, um cemitério
de desejos nunca consentidos, a lamentar a vida que, por covardia, falta de
aptidão ou recalque, nunca teve.
Nascida
na Paraíba, irmã do escritor e compositor Bráulio Tavares, autor dos clássicos Caldeirão
dos Mitos e Nordeste Independente, Clotilde Tavares fez no Rio
Grande do Norte uma carreira literária reconhecida. Com uma produção regular e variada, indo da
literatura infantil ao teatro e à crônica, Clotilde é também uma animadora
cultural ativa. Mantém há mais de 10 anos o blog Umas & Outras (http://umaseoutras.com.br ) e
uma página movimentadíssima no Facebook, coordena um clube de leitura com
reuniões mensais, dá palestras, enfim, amplifica o quanto pode a existência da
palavra escrita.
Clotilde
escreveu um romance grandioso, de enredo bem urdido, cheio de surpresas bem
administradas e de ritmo agradável e exato. Um romance maduro, compacto, sem
fissuras.
Eu
confio nos meus arrepios, na respiração
suspensa e na pressa da curiosidade atiçada. São meus sinais orgânicos de
julgamento estético. E todos esses sintomas me vieram durante a leitura: muitos
arrepios diante da cadência e da vibração das frases e dos desenlaces
surpreendentes do enredo.
O
americano David Mamet, premiado autor de sucessos na Broadway, diretor de
teatro e roteirista de cinema, sustenta que no teatro o trabalho do diretor é
fundamentalmente fazer os atores falarem alto, a fim de que toda a plateia os
escute, e de contar a história de modo a evitar que o espectador se levante da
cadeira e vá embora. O trabalho do romancista é basicamente o mesmo: fazer o
leitor, depois de abrir o livro, permanecer com vontade de mantê-lo aberto.
Como sempre, a teoria não é muito complicada, complicado é colocá-la em
prática.
Clotilde
faz isso em De repente a vida acaba. Faz isso atiçando a curiosidade do
leitor, deixando que, em certa medida, ele preveja o que vai acontecer, mas, na
maioria das vezes, surpreendendo-o com sequências diferentes daquelas que ele
supôs. O leitor sente-se participante do texto, mas sabe que não é o dono dele.
Sem humilhar o leitor, a autora se impõe. E o leitor, no fundo, quer isso, quer
que o autor pareça mais inteligente do que ele.
Clotilde
produziu um romance formalmente ousado. São duas histórias entrelaçadas,
fragmentadas, não lineares, recuperadas por jorros da memória – um pequeno quebra-cabeça que não
espanta o leitor, pelo contrário, estimula-o a montá-lo. As frases e os
parágrafos, muitas vezes longos,
sustentam-se no ritmo sem tropeços e na atratividade do enredo.
A
história é esta: Maria Eulina viveu uma adolescência que não era sua. Seu pai
queria um filho para fazê-lo escritor, mas como esse filho nunca veio, o sonho
paterno se transferiu para ela. Embora incômoda, ela carregou estoicamente a
expectativa familiar. Descobriria com o tempo que não tinha o talento que o
ofício requeria. Morto o pai e
mergulhada a família numa certa penúria financeira, a mãe tomou para si a
tarefa de não deixá-la esquecer do seu destino postiço, ao mesmo tempo em que
também cobrava uma profissão de futuro e um casamento promissor. Sem gostar,
sem suportar a proximidade de uma boca aberta, formou-se em Odontologia e
favores políticos intermediados por um tio influente a fizeram funcionária
pública no Inamps. Não casou, mas teve
um filho – mãe solteira, com o agravante de não saber quem era o pai da
criança. Mais à frente, quando conheceu as circunstâncias da gravidez da sua
empregada, também mãe solteira e também ignorante da identidade do pai de sua
filha, ela criou uma nova categoria de filhos: os filhos do álcool, aqueles
nascidos da loucura de uma bebedeira. A filha da empregada, no dizer da própria
mãe, era filha de um litro de Montilla; o de Maria Eulina, respeitadas as
diferenciações de classe social, era filho de um litro de uísque. Mas esse
filho único, Luís Eduardo, que lhe anunciava grandes alegrias, morreu
adolescente num acidente de carro. Ela alimentará com sofreguidão essa ferida
para que não cicatrize nunca. Morta a empregada, ela adota sua filha, a quem
cria providenciando o necessário, mas mantendo um afeto distanciado, como se
este fosse exclusivo do filho que não existe mais. A menina a chama de
Madrinha, mas ela nunca a chama pelo nome, é sempre “a menina”, a quem destina
um certo desprezo agravado pela ingratidão latente. A “menina” faz um bom
casamento, é feliz, e cuida dela com desvelos de boa filha. No entanto, é como
uma mulher sozinha que ela se vê. Na
casa dos 70 anos, vivendo as doenças e as limitações da idade, Maria Eulina é
uma mulher amarga, ressentida, aborrecida com tudo, enlinhada em seus
preconceitos e frustrações, embora desfrute de uma vida financeiramente
equilibrada e confortável. É em tudo uma dessas criaturas para quem a
felicidade alheia é uma afronta. É uma mulher no ocaso, embora, a rigor, desde
jovem tenha sempre vivido nessa zona.
A
realização como escritora chega-lhe de modo inusitado: vem através de um
envelope grande abarrotado de folhas escritas, entregue por uma sobrinha-neta
de sua amiga Aline, como vontade última da falecida. Há mais de ano não tinha
notícias de Aline, não sabia de sua morte. No envelope está a história da
amiga, contada de modo vivo e vibrante. Será este o romance que Maria Eulina
nunca conseguiu escrever.
O
livro de Clotilde trata da vida miúda, cotidiana, de duas pessoas comuns, com
seus pequenos atos de grandeza e com as mesquinharias de igual tamanho. Mas a
literatura serve para isso: para revelar na aparente simplicidade toda a
complexidade da vida. Ela serve para mostrar que o inferno são os outros, como
apontou Sartre, mas o céu também, como não podemos deixar de sublinhar.
Em
síntese, como bem demonstra Clotilde Tavares, toda vida contém matéria para um
romance. O problema é que nem todo personagem tem a sorte de encontrar o seu
autor. A doutora Maria Eulina e a porra-louca da Aline encontraram.