domingo, 27 de junho de 2021

COMPLETUDE



Vanda Maria Jacinto
 Escritora, autora do livro Rabiscando os Caminhos da Prosa
 v.m.j@hotmail.com 

     Era meados do mês de novembro. O ano? Mil novecentos e sessenta e três. Um final de tarde que, para muitos, seria mais um dia como tantos outros. Para ela, no entanto, tinha um significado todo especial.
      Trazia nas mãos seu tão desejado passaporte para a felicidade plena. Em breve, voltaria para casa. Sonho que acalentava já há alguns meses – aliás, desde que ali viera morar, na casa da tia e madrinha, para concluir os estudos primários.
       Na nova morada, não só as pessoas, mas os costumes também eram diferentes. Sinceramente, a tristeza a definia, pois sentia falta dos irmãos, dos afazeres de casa, que tomavam boa parte do tempo, do auxílio, que prestava à mãe junto as costuras. Enfim, desejava ardentemente a volta à antiga rotina.           Na casa da tia, não havia barulho de crianças – na verdade, a única criança era ela própria. Não havia roupas espalhadas, nem sapatos embaixo da cama, para recolocá-los no lugar certo.
       O chão sempre encerado – parecia um espelho – as colchas das camas não tinham nenhuma ruguinha – porque adulto não se deita a todo instante na cama. Os tapetes, além de alvíssimos, bem esticadinhos; a televisão só ligada, quando um deles o fazia – o que significava assistir ao que bem pretendiam – embora traga na lembrança que assistira a alguns seriados do Zorro e Tonto – uma versão mais antiga do Zorro atual. Pense como ela gostava.
       Em casa, não havia televisão… Sentar na poltrona? Nem pensar! Nada, absolutamente nada, ficava fora do lugar naquela casa. Tinha medo até de transitar pelos cômodos, sentia-se intrusa, procurando um lugar que a coubesse, sem se arriscar a desarrumar os espaços tão bem organizados. Embora nem soubesse o significado da palavra ‘intrusa’, hoje é consciente de que era assim que se sentia e sabia que tal sentimento limitava suas idas e vindas, torturando-a incessantemente.
        Muitos foram os aprendizados dessa época, inclusive sua percepção do gigantesco medo que sentia no escuro. Em casa, a mãe sempre deixava uma luz acesa para eventuais excursões noturnas, mas a madrinha não admitia essa besteira. Dormir no escuro era um dos seus temores, cujo trauma a perseguiria até bem pouco tempo.
        Ir à escola era uma das coisas que sempre gostou de fazer, mas vinha percebendo um prazer inusitado em estar lá. Talvez por ser uma das poucas coisas que restara da sua antiga vida.
        Estudava no turno intermediário; assim sendo, quando voltava para casa, todos já haviam almoçado. Mal engolia a comida e corria para lavar a louça – uma das suas atribuições.
        Logo após, livre de outros afazeres, corria para se isolar entre os vasos de plantas, da área de entrada da casa. O seu franzino corpo se acomodava de tal forma entre as samambaias que dificilmente alguém a acharia ali. Esse era, sem dúvida, o seu esconderijo, lugar preferido, quando o assunto era o dever de casa e os seus devaneios. Impressionante como sempre levou a sério os sonhos.
        Ali, escondida de todos, o ritual se concretizava dia após dia. Depois de chorar sozinha, lamentando a ausência da sua mãe, acalmava o coração e começava a contagem regressiva dos dias que se seguiriam, até voltar ao lar. Aos poucos se voltava para as tarefas escolares.
        Assim, nesse novo roteiro, permitia-se dar asas à sua imaginação e suportar as mudanças ocorridas em sua vida.
        Mas, sem dúvida, esse era um dia especial. Em segredo, lia pela enésima vez, o Boletim Escolar, onde a querida professora – Dona Wilma – havia registrado, com tinta azul, sua aprovação do quarto ano primário. Fato que, além de selar o final de mais um ciclo, significava, também, o encerramento do ano escolar, a volta para a casa dos pais, os festejos de Natal – embora simples, enfim era tudo o que precisava naquele instante. Sem perceber, o sorriso tomou conta do rostinho. Naquela tarde não houvera choro, mas a mais pura alegria transbordava do coração.
       Na semana seguinte, não haveria aula, porém, um mutirão, incluindo pais e alunos, para a limpeza geral da escola – lógico que ela se incluíra. A festa de colação era um dos mais importantes eventos da escola.
       Feliz da vida se viu pronta para a formatura que aconteceria no início de dezembro. Prendadíssima, a mãe já reformara um vestido branco, e confeccionara um casquete com papelão recoberto com cetim e filó finíssimo, onde um bordado com vidrilhos, canutilhos e pequenas pérolas, davam o acabamento. Um verdadeiro primor.
       Tão entretida estava que nem percebera as horas passarem. Despertou com o chamado estridente da madrinha. Alertando para o banho e o jantar que seria servido a seguir.
       Juntou apressadamente o material escolar, guardou o boletim dentro de um livro e correu para atender a solicitação da madrinha.
       Ao dobrar uma esquina do quintal, trombou sem querer com a avó materna – pessoa querida –, que ouvia os seus lamentos e os tentava amenizar. Inquirida sobre a pressa, olhou nos olhos da avó e disse: “Vó, passei de ano!”. Num abraço apertado, a avó retribuiu a boa notícia, talvez uma lágrima contida também se fizera presente naquele instante, pois ela, mais que ninguém, sabia do desejo daquela criança.
        Entendia também que todas as situações que a menina vivera ali, ou seja, a casa da madrinha, os novos costumes, a saudade, tudo fora importante para a conclusão daquela etapa. Mas, sem dúvida, na cabeça da menina, voltar para casa, para a mãe, para os irmãos – mesmo sem TV, mesmo sem os luxos daquela casa, era tudo o que mais desejava. O amor do lar era o que de fato importava.

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