Por Túlio Ratto
Não teve como não recordar, em nossa estada em Tibau, neste período pós-réveillon, do cantor Bartô Galeno cantando a música que nos remetea uma aventura dos domingos na ‘praia dos mossoroenses’. “Hoje é domingo e lá vou eu todo contente, com saudade de rever aquela gente, largo tudo na cidade e vou pro mar, Areia Branca até que é um bom lugar… Praia de Tibau…” E chegamos à praia de Barra, município de Grossos, após enfrentar cerca de 20 quilômetros de uma tábua de pirulitos, a RN Dehon Caenga, para bater um papo com o poeta e cantor Genildo Costa. Nota-se a grande alegria do poeta em receber nossa comitiva, não relaxando nos cuidados necessários ao momento em que vivemos de pandemia. Distanciamento social, uso de máscaras, um tubo de álcool em gel a tiracolo, um grande talento à nossa frente, uma cerveja já sendo consumida, o aviso de que os siris estavam sendo preparados para a recepção, e a partir daí, um olhar emocionado em cada lembrança de sua trajetória.
Genildo esteve até dezembro do ano de 2020 como secretário de Cultura do município de Grossos. Pergunto exatamente sobre como é estar nas duas pontas, como artista e como gestor. E se o artista realmente tem razão em reclamar cotidianamente. “De certa forma tem. Pela experiência vivida, acho que o artista também tem uma particularidade: o comodismo. Em não ser agente da sua própria história, de estar atento às coisas, nessa realidade complexa de hoje em dia. O radar tem que ficar ligado, afinal você tem que ser artista, microempreendedor, um indivíduo antenado com os editais”.
Ele fala em comodismo, a gente comenta a vagabundagem que aconteceu em algumas cidades do RN, quando secretários de cultura devolveram o dinheiro da Lei Aldir Blanc por falta de projetos.
Eu estive quatro anos à frente da cultura de Grossos, quatro anos de luta, de sonhos, de utopia. Jamais na minha vida eu poderia renunciar ao chamamento da minha cidade, da minha terra, a que me viu crescer, que me deu régua e compasso da forma mais bonita possível. Neste segundo momento, confesso que o aprendizado foi bem maior. A primeira vez foi entre os anos de 2001 e 2004, que era na gestão do prefeito João Dehon, do Partido dos Trabalhadores. Começamos aqui quando nem existia secretaria, era apenas um departamento de cultura. Conseguimos naquela época, através da Funarte, mesmo que timidamente, a formatação, digamos assim, da banda de música do município. Muita gente não sabe, mas todas as cidades do Brasil recebiam e ainda recebem kits para banda de música. E muitas delas não conseguem. Acho que naquele momento eu comecei a acreditar que podia fazer mais, podia fazer acontecer. Mas, o grande problema é que a cultura no Brasil sempre foi hostilizada, está sempre em décimo plano, tipo “se sobrar algo eles encaminham para a pasta da cultura”. Aqui, agora, não deixei voltar dinheiro, usamos tudo da Lei Aldir Blanc que veio para Grossos. Eu diria que quando deixam voltar dinheiro é por falta de espírito público associado à ausência de gestão pública. Porque todo ente, politicamente falando, as prefeituras do Brasil receberam ao todo dois bilhões de reais, uma quantia significativa, um orçamento significativo, que não caiu do céu. Foi uma luta travada no congresso para que chegássemos a dizer: “A cidade de Grossos, pela primeira vez, depois de 67 anos de emancipação política, nunca viveu um momento histórico tão importante, de ter orçamento com foco na cultura. Nunca teve. E eu estou apenas reproduzindo o que os artistas revelaram e confidenciaram a mim. A cidade sabe disso, nunca tivemos, muito pelo contrário, sempre vivemos sob o ciclo da piedade: “Vai lá no prefeito Túlio, que ele pode arranjar R$ 100 reais; vai lá no Sacolão, que ele pode arrumar R$ 50”.
“Mas, o grande problema é que a cultura no Brasil sempre foi hostilizada, está sempre em décimo plano, tipo “se sobrar algo eles encaminham para a pasta da cultura”
O poeta-gestor complementa enaltecendo seu trabalho como secretário: “Isso nos dá a certeza de que, primeiro, falta um elemento necessariamente possível, se você quer ser gestor público, eu diria que esse elemento seria comunicação. Eu tive duas alternativas, fiquei até temeroso, e pensei: “Meu Deus, são 93 mil reais? Acredito que é um orçamento razoável, mas também acho que eu tenho que ter o mínimo de atalhos possíveis para que esse dinheiro não volte, a gente não passe vergonha” e que a cidade futuramente, em um curto espaço de tempo, possa ficar inadimplente. Qual foi a minha primeira iniciativa? Ser igual àquele personagem de Chico Anysio que dizia “se sei digo que sei, se não sei digo que não sei e pronto”. Ter humildade. E eu tive o privilégio de ter uma criatura como o meu amigo de estrada, do teatro, de música, o teatrólogo Berg Bezerra, diretor da Companhia Cidade do Rio de Teatro, de Janduís. Ele não mediu esforços para nos ajudar. Veio para nossa cidade e criou todos os caminhos da legalidade, todos os mecanismos foram criados. E quando as pessoas vieram entender que aquilo tudo era real, muitos perderam, pois achavam que era apenas discurso. As portas estavam abertas, todas as reuniões que fizemos eu achava até que era impossível de fazer. Eu me perguntava: “Como é que você é um gestor e não se comunica?” Por intermédio de alguns meios de comunicação aqui de Grossos, conseguimos chegar ao artista. Eu queria chegar a todos. Mas, infelizmente, ainda tive o desprazer de contar muitas vezes com a indiferença deles. Convidava e eles não compareciam. Não fui nenhum arauto de uma coisa que não era minha, eu estava apenas tratando de uma coisa que era de todos. Se não quis vir, desculpe. Incomodei várias vezes o pessoal da rádio, enviava áudio, falava ao vivo sobre as pautas…
Quais os principais projetos aprovados pela Lei Aldir aqui em Grossos?
Nós publicamos dois editais, o de prêmios e o de subsídios. Com um grande problema, a cidade estava inadimplente. A cidade é um espaço de visionários, a cidade não tem parâmetros de funcionalidade. Se tem uma associação, é ilegal, se tem um grupo um empreendedor é ilegal. E se tem, não paga ao Sebrae; não tem condições. Hoje, por forças das circunstâncias, tem a Associação Cultural de Grossos, justamente onde o dinheiro foi depositado. Eu sei que existem outras associações, outros gargalos.
Quem conhece Genildo sabe que ele se emociona facilmente. Quando perguntamos sobre o legado que ele deixa para a Cultura de Grossos, foi como se ele respondesse a pergunta cantando a música Meu Brasil de canto a canto tem suor de nordestino. “É tipo trabalhar como gigante e ganhar como menino. A classe artística está cansada. A coisa se tornou tão cansativa… E não é só em Grossos que isso acontece. Nós, queiramos ou não, temos que respeitar esse tempo de brevidade, tudo passa e a gente não é mais aquele menino de 20 anos, que pega o violão e sai para a estrada, viver aquela coisa de sonhos, da aventura, não tem mais espaço para isso. O que estamos querendo agora, em nossas manhãs, é o sossego. Sou convicto que procurei ser, acima de tudo, transparente. Foi uma página construída com tranquilidade. Fiz o possível para que pudesse corresponder minimamente a essa cidade que me deu tudo, me deu régua, compasso, me deu a hora de chegar, me deu a hora de sair, e se eu tenho essa percepção de dizer e de externar minha gratidão por ser filho de Grossos. É muito orgulho, é algo indescritível esse sentimento de ser filho de Grossos. Por onde andei e passei visitando espaços privilegiados desse país, não foi porque eu pude ir não, foi porque fui chamado. E todas as vezes que estive aqui para assumir esse desafio, esse compromisso como gestor, muitas vezes subestimei a minha própria capacidade de ser artista. E eu tive que optar, pois aqui seria dedicação exclusiva. E sentia essa força quando recebia artistas que a mim tinham a hombridade de realizar algo e não se preocupar com o cachê. Você sabe que é difícil, você é meu amigo e eu não posso passar a vida toda puxando pelo seu braço com essa marca do “zero oitocentos”. Queira ou não, a gente capitaliza as coisas porque sabe que quando você faz do jeito que você imagina, que eu imaginei ser possível, e foi possível, eu saio com a certeza do dever cumprido.
“A cidade de grossos, pela primeira vez, depois de 67 anos de emancipação política, nunca viveu um momento histórico tão importante, de ter orçamento com foco na cultura”
Quais são os planos agora, Genildo?
Retomada da vida. Tenho outros horizontes, até porque fui de certa forma particularmente ingrato com o que eu construí. Chegou um momento que as pessoas até achavam que eu era simplesmente um visionário, um sonhador, utópico. Mas eu tenho hoje um acervo na minha casa, que eu construí com a minha família e criei meus filhos, em Mossoró. Tenho uma biblioteca e muita vontade de realizar agora um antigo sonho, que é doar essa biblioteca. Mas sempre tive receio de doar à pessoa errada. Tem que ser para alguém que tenha responsabilidade e seja minimamente cuidadoso. Cuidado de saber que por mais que subestimem os livros, a gente precisa ter aquela sensatez do Monteiro Lobato que dizia “não se constrói um país sem livros”. Vou levar para minha sepultura essa expressão tão rica. Estamos iniciando o projeto de uma página no YouTube, a “Quarta Alternativa”. Retomaremos alguns projetos na minha casa mesmo. Volto a dizer, as pessoas até não acreditavam que tudo que era real e quando caiu a ficha já não havia mais tempo para fazer o cadastro para participação no edital. Quando viram que o dinheiro já estava na conta de fulano, que 12 mil já estava disponível para o proponente, aí houve o choque. “Mas por que já recebeu? Ah, foi porque fulano procurou, estava atento. Ele estava com o grupo dele de capoeira com CNPJ, tudo arrumadinho”. Eu fiz muito esse discurso, até repetitivo, quando chamava as pessoas para a Casa de Cultura. Quando eu falava que o Plano Municipal de Cultura era uma política de Estado e não uma política de governo, e que a gente brigou para isso, mas me viam com incredulidade. Enfim, o plano foi aprovado. Se você andar de Porto do Mangue, nessa Costa Branca, até Icapuí, você pode perguntar: “Me diga, Porto do Mangue, você tem um plano de cultura?” Tem, não. E por que não tem? Primeiro, por ausência de espírito público, porque dá trabalho construir um plano cultural. Assessoria jurídica de prefeitura não quer ter trabalho. Falta interesse. Infelizmente. Chegamos ao ponto de Crispiniano Neto, presidente da Fundação José Augusto, em uma entrevista de rádio, dizer que “Genildo Costa estava cavando com as unhas”. Então eu sou um peba [risadas].